domingo, 14 de fevereiro de 2016

Janice Drumnond, a vizinha de frente e suas memórias

Janice Drummond
Nasci aí, na primeira curva da rua Quintino Bocaiuva, 160, hoje Av. Magalhaes Pinto, (vejam no Google). Mais tarde mudei para o centro de Caxambu, vizinha da nata social, os Almeida, Dona Ruth e dr. Acássio e o cheiro permanente de pasteis de nata. Quando cheirava era só descer duas casas e tinha pastel de nata na certa. A Zaida na esquina, trazia roupas lindas do Rio pra vender na loja e aproveitava pra copiar as de tricô e tecer iguaizinhas pra mim. E a casa onde nasci virou a casa da vó Orminda e da dona Ritinha. 
Praga pega
Aos 5 anos, a construção da nossa pequena casa por meu pai, me levou de volta ao poeirão da rua Quintino Bocaiuva n° 96 (façam uma visita atreva do google à casa em Caxambu) e ao grupo dos mesmos vizinhos, numa época em que vizinho era sinônimo de família, de amigo intimo com o qual se podia contar. A rua poeirenta me ensinou que rogar praga, pega. Brincando de pegador, como sempre eu e a Beth, às vezes a Tereza da Ivone e Alcides, o pó não me deixou ver uma bicicleta e fui atropelada. Não machuquei, mas lembro que pensei: esse miserável há de cair da mesma forma que me derrubou. Dito e feito, a bicicleta bateu numa pedra, em frente a casa onde nasci e o condutor se estatelou. Também não machucou, mas foi a primeira vez que entendi que as palavras tem vida e que podem moldar a vida.
Vó Juruvá
Quase em frente de casa vivia a vó Juruvá. Velha, bem velha, de nome Gervásia, cujo "erre" eu ainda nem conseguia pronunciar, acabou batizada por mim com este nome, que quando eu dizia, todo mundo sabia de quem eu falava. Juruvá pra mim significava ser velho, ter muitas rugas e ter o mesmo tanto de rugas que de poder. Era brava, não gostava que a criançada perturbasse, que atrapalhasse as tarefas domesticas, mas com ar sempre disciplinar, fazia muita vista grossa pra aprontação da meninada.
Era uma casa amarela (veja no google) com uma pequena varanda, onde a gente não tinha carta branca pra circular no espaço interno, nem mesmo pra chamar no potão, mas nem precisava. Tinha um quintal enorme que varava o quarteirão. Entrava-se pela rua de cima e saia-se pela rua de baixo, paralela, e ai nos fundos, a casa das amigas quase irmãs, eleitas irmãs, já que eu não as tinha: A Beth (de idéias mirabolantes de resultantes sempre discutíveis, sempre contando com meu apoio, mesmo sendo mais nova. Verdadeiro ídolo de maturidade pra quem mal das fraldas havia saído) e sua irmã Solange, mais nova que eu, pequena demais pra sofrer as conseqüências, mas participante ativa das “artes”.
O portão de entrada da casa,  era seguido por uma cerca alta de bambu, provavelmente feita com maestria pelo seu Joaquim Roque. Este, remanescente ainda da escravatura,  passava o dia plantar, a cortar, igualar as ripas de taquara e estaquear a cerca perfeita, enquanto distribuía historias de época que nos enchiam de medo e questionamentos. Eram contos de fantasmas que assombravam fazendas, de entidades folclóricas escondidas em capoeiras, e devo agradecer a ele o estimulo a imaginação e as memórias vivas que me fazem relatar com propriedade tudo o que vivemos.
Seguindo a cerca, aí sim, encontrávamos o portão certo onde chamar. Havia este acordo tácito, nunca redigido ou discutido mas que todos conheciam e respeitavam. Não adiantava bater na porta da frente, esta nunca se abria. Mas gritar vó Juruvá deste portão lateral, era verdadeiro “abre-te Sésamo”. Lá vinha ela, encarquilhada, escorando no seu bastão, pra mim a visão de uma mão no cajado e outra apoiando as costas, a voz seca a perguntar: "O que voce quer". Atrás dela a visão do paraíso. O quintal de fora a fora, com as frutas, na dependência da estação. No outono os cítricos, as laranjas de todas as qualidades espalhadas, podendo colher a vontade e algumas proibições que me soavam como a maça do paraíso. A laranja Bahia não, nem pensar em chegar perto... Mas vez por outra eram colhidas e a gente recebia delas em casa, como presente à minha mãe. A laranja lima, essa nem pensar... Era a que ficava mais perto da varanda de trás, perto da cozinha, a única que ela mesma gostava. Mas era tanta laranja que só mesmo a proibição nos fazia rodear vez por outra as proibidas, ideia da Beth pra atormentar a pobre. No verão vinham as jabuticabas. Uns quatro a cinco pés carregados, pra chupar em volta do galho, limpar o galho pra poder sentar nele e continuar a festa sentado pra não se cansar. Dois pés de jabuticaba rainha, enormes, do tamanho dos olhos da gente e também proibidas. O jeito era ficar namorando, medindo crescimento, esperando a liberação. Quando este dia chegava, a festa era total.
Laranjas de umbigo
Nunca me esqueci da baita surra que tomei, dia em que aprendi o significado da palavra “cantada”. Minha mãe precisando falar com a avó Juruva e eu de intrometida aproveitando a deixa pra praticar oportunismo, dizendo eu também vou, quero ver a vó, eu vou junto, até ser levada.  Era questão de atravessar a rua em passo obliquo. De pé no portão correto, o do quintal, mamãe chamando a vó Juruva e eu na expectativa do portão se abrir pra “cantar” umas laranjas Bahia, proibidas pra nós, mas podendo ser, talvez, obtidas pelo respaldo da presença da mãe. Ledo engano. Minha mãe desfiando o que foi la dizer e eu atrás das costas dela só cobiçando as laranjas. Eu toda voltada pro pé de laranja Bahia logo ali no meio do terreiro.  Ousei a primeira vez: vó, to com vontade de chupar as laranjas de umbigo. E ela: "Ainda não estão no ponto, estão azedas". Um pouco de espera e la vou eu de novo: vó não tem problema estarem azedas, é pra fazer laranjada. E ela: "Quando estiverem prontas te dou". Mais espera. Vó, me dá só uma... E ela: "Não, vocês tem todas as outras pra chupar". Minha mãe vermelha de vergonha e raiva pedindo pra não insistir. E eu, sem noção: vó, uma só, com cara de quem nunca viu uma laranja na vida, tipo eu nunca chupei uma laranja destas e vou morrer se não me derem, vou morrer com a boca cheia de formiga. E a vó, já sem graça, cedeu e disse:  você pode apanhar 4 (um bambu bifurcado deixava as danadas ao alcance). Fiquei radiante e já ia entrando portão adentro e fui suspensa pela orelha.  Voltei pra casa sem as laranjas, tomei uma surra e ate hoje ouço a mamãe dizendo:  "A gente não fica cantando ninguém pra ganhar nada". E assim a lição ficou bem aprendida. Deixa as laranjas pra la. 
Por sua vez...
Preferível colher marmelo na casa do Luiz eletricista, que o Douglas ajudava a apanhar. Não tem gosto de nada o tal do marmelo tirado do pé, mas pelo menos se entende de onde sai a tal da vara de marmelo, famosa para as crianças da época, considerada o tipo de surra das mais doídas. Alias, segundo o Luiz, marmelo é ruim, mas o abacate , “por sua vez” (termo que ele enfiava em todas as falas) era gostoso e na casa dele tinha, logo na divisa de terreno dele com o nosso, servindo ás duas casas com as frutas que o Fabeco em pessoa colhia pra nos dar. E do lado de ca da cerca, na minha casa, o abacateiro tinha um galho frondoso, dando pra horta, onde o Joaquim Roque fez uma plantação de milho, separada do jardim. Ele amarrou no abacateiro um balanço de corda interminável, que levava a criançada da varanda da casa do Luiz e passava a cerca entre a horta e jardim na minha casa. Verdadeira viagem pela vizinhança em gangorra. La até a varanda do Luiz, onde a Conceição ajudava a costurar as roupas da bonecas, invadia a plantação de milho e atingia um ponto acima das margaridas do jardim passando por cima da cerca. A gente ia e voltava como se não houvesse divisa, a gangorra vencendo facilmente as cercas e ninguém se incomodava. Os adultos, independente de parentesco, vigiavam, zelavam e disciplinavam.
Eu e a Beth, aproveitávamos. Minha mãe sempre ocupada e fora, (já que Arminda não desviava o olho da gente, era dona de casa e estava por perto o tempo todo evitando traquinagem. Solange sempre na barra da saia dela). Descíamos o guarda roupa da minha mãe, casacos, sapatos de salto e assim paramentadas íamos pro balanço imaginando sabe-se la o que, talvez viagens a Paris.
Melhor que Paris

Quintal da vó Gervásia, com Elizabeth e Solange Ayres, 1965
Mas o quintal da vó Juruva era o mundo, muito melhor que Paris. Quebrando a direita no meio do quintal, rumávamos pra casa da Arminda, (foto) casa das netas legitimas, a Beth e a Solange. O pai delas bravo, José Ayres, filho da vó Juruvá. Mas quem sabia o que era legítimo? Era todo mundo neto. E eu nunca pensei que não fosse. Curiosamente, a mesma cerca de bambus do seu Joaquim rodeava a casa delas. Coincidentemente, a porta da frente dava pra rua de baixo e a gente nunca entrava por la, sempre pelo portão lateral que dava na varanda dos fundos. Ai sim, na beira da cerca muitas dálias, a entrada super receptiva. E em frente a porta principal, ao invés de jardim uma plantação de milho. E a gente vigiando o milho, olhando se o cabelo dele já estava vermelho,  porque sabia que ia ter milho cozido quando pronto, ia ter curau e pamonha e a gente ia ajudar a debulhar os que ficavam duros pra dar pras galinhas, ia fazer monte de coisas com os sabugos, bonecos, carrinhos, cavalinhos de sabugo e alguns gravetos, mas o mais importante: aguardar a colheita pra detonar os pés secos brincando de escolinha. Ali reproduzíamos a sala de aula, com os alunos competentes e incompetentes, cada qual um pé de milho seco com nome, os mesmos nomes dos colegas de classe da Beth. E coitados dos considerados incompetentes, vítimas das reguadas disciplinares, no nosso sistema de ensino. A Beth era sempre a professora e eu e Solange os alunos. Solange meio “café com leite“ na brincadeira,  mas atuando como era de se esperar, sentadinha obedecendo a Beth.... e ai da gente se não obedecia em poucos dias da repetição da brincadeira, não tinha um milho seco de pé. Ficava fácil pro seu Joaquim roçar.
Arlindo, o charreteiro, Geraldo careta, Catuia e outras figuras

No fundo do quintal (frente da casa da Beth) outro portão dando na rua de baixo, de frente pra uma casa urbana sim, mas com ar de fazenda, com paiol, curral, vacas e cavalos. O Arlindo charreteiro, vizinho que ocupava um quartinho na casa do seu Virgilio, o da esquerda da vó Juruva, tratava ai o cavalo da charrete e ai a gente via como banhar e escovar um cavalo, como paramentá-lo para o oficio e prepará-lo pra carregar turistas na porta do parque, função menos nobre do que a de  dar carona pra gente chegar a escola, pra não ter que fazer a caminhada no inverno, todo embrulhado em cachecol, sofrendo com os 6 graus de temperatura, a neblina e a geada que cobriam os gramados pelo caminho.

As Mudinhas, foto Nia de Souza
Arlindo sentado no estribo, eu refestelada folgada no banco, o toque toque da ferradura no paralepipedo das ruas, só na insistência pra que me entregasse os arreios, porque alem da carona, divertido mesmo era controlar o cavalo. As vezes ele permitia, outras vezes não. A volta sempre animada, correr a distancia enorme do muro do Crac, com medo do Geraldo careta, coitado, sofria de bócio, e as caretas banguelas eram assustadoras mesmo sendo apenas sorrisos. Com sorte, não trombava com Catuia que era o terror da criançada, com sorte ganhava-se balas no Anízio e no Zé Caetano, e com mais sorte ainda, as Mudinhas apareceriam na parte da tarde pra uma seção esquadrão da moda. O ócio da gente, oficina do capeta, e as mudinhas nossas bonecas vivas. Miúdas, mudas, enfezadas (uma mais que a outra), sempre com uma varinha na mão pra fazer correr a criançada impertinente, mas com a Beth pareciam hipnotizadas. Pegávamos roupas velhas, bolsas, sapatos, rouge, pó de arroz e la iam as mudinhas super fashion com nosso trato. E o povo perguntava... Quem fez isso com as mudinhas? Elas cada dia com um tipo de decoração, era só passar pela nossa mão.
Brincando de roda com vó Ritinha

Infância rica e criativa. Se quisesse ver lindas pinturas, e até brinquedos inventados, era só andar mais um pouquinho, passar o portão da vó Juruva e bater na casa da Zezé Petterle.  O barranquinho em frente da casa era apoio pra gente subir em bicicleta. Ainda guarda cicatrizes no joelho. Se quisesse aprender crochê, tricô, bordado, era só ir pra próxima casa. Tinha ali a vó Orminda que ensinava de tudo e ainda de brinde, dava pra brincar com a vó Ritinha que, centenária e esclerosada, adorava brincar de roda e de boneca. Pra gente, esclerose não era doença, vó Ritinha era lucro, mais uma pra brincadeira. Se quiséssemos ver gente pintando, desenhando e tocando acordeon, era só rumar ao campo do Crac, na frente a casa da Ivone e suas prendadas filhas. Perigo não tinha, cumpadre Lazinho, gordo e cheio de varizes tinha a alfaiataria logo ao lado e dava noticia de tudo, já que vivia sentado ai na porta. Não achasse ninguém, tinha o Marruco filho do Lazinho, sempre com o cordão escorrendo do nariz, mas bom de brincadeira, mais tarde virou marceneiro. Do lado dele a casa dos parentes do padre, esta intocável, mas servia pra bater palmas, sair correndo e esconder pra ver as pessoas misteriosas que quase não se apresentavam em publico. 
As divorciadas

Descendo a Quintino bocaiúva, tinha a casa do Luiz Carlos, hoje pediatra,  mas na época menino minguado, cheio de irmãs e irmãos. Não eram de brincar muito, mas era a única casa no começo da década de 60 que tinha televisão. Era ruim, só funcionava as vezes, mas era tudo o que a gente sabia de modernidade. Em frente do Luiz carlos, a casa da Americana, mulher emancipada, sozinha, separada do marido, motivo de falação da mulherada da cidade, cabelos ruivos tingidos, maquiada, dona do próprio nariz, local meio que interditado a filhas de mães bem casadas, cujo divórcio seria impensável na época. 
Eram duas divorciadas na cidade toda, contadas dedo: A americana, e a Mariazinha ex mulher do Walace, esta sim bem justificada, culpa do marido a separação: bebida...
E mesmo assim apenas  digerida pelas mulheres, jamais aceita, ainda bem que vivia do outro lado da cidade, em cima do posto Texaco do ex.  Assim não oferecia muito risco a convivência. Chiquerrima, mentalidade dos EUA, viajava e trazia roupas americanas lindas, casacos de pele até. Estes eram cobiçados pra se enfrentar o footing em frente ao cinema, programa de final de semana dos casais. Eu diria meio footing já que os ricos iam ate a metade e voltavam e os pobres faziam a outra metade, só que do outro lado da praça, em frente a radio

As mulheres toleravam Mariazinha pela vaidade, mas ficava o estigma: divorciada, vivendo em pecado frente a Igreja Católica, coisa muito séria pra uma época que até passar em frente a igreja protestante era heresia. Por sorte a Americana vanguardista era vizinha e... Fornecedora de fotonovelas, coisa tão proibida quanto revistinha de sacanagem, já que estimulava a libido, mesmo que fossem só historias de amor. A Beth era freguesa absoluta, mas eu a guardiã. Ai dela se Arminda descobrisse! Eu sabia ler desde os 4 anos, mas o interessante ali nem era ler e sim ver as fotos... Foto de beijo, ai que pecado. Mas sábado era hora de confessar e ficava tudo resolvido. Era confessar ou não tinha comunhão no domingo. 
Os "anjinhos" do mes de maio
Coroação no mes de maio. Janice Drummond colocando a palma.

E era preciso comungar porque todo ano tem mês de maio e criança comportada, em maio, virava anjo, verdadeira competição de quem tinha a veste mais bonita, quem tinha a asa mais possante e em especial... Quem seria a festeira? Disso dependia a fartura do cartucho, motivo maior da coroação. Era também o festeiro quem escolhia a função de honra, por palma, por coroa, jogar flores do cestinho ou participar do quadro vivo. Ser anjo na fila era de pouca importância, mas pouco também  nos importava a hierarquia,  já que o cartucho de doces, no final, era igual pra todo mundo. Um frio danado, e a gente de anjo por cima e pijama por baixo, dali da igreja, pra cama direto. Se a festeira era a Maria boleira, a criançada já sabia: o cartucho seria dos bons. E dependendo do festeiro, eram balas amarradinhas, 4 a 5 só. Então nem valia o sacrifício, mas a gente ia, com medo do próximo festeiro não chamar. 

E tinha que fazer bonito porque a Lourdes Silva estava sempre observando, pra escolher quem ia participar de teatro, de concurso de rainha. Eita concurso difícil, a gente tendo que correr a cidade pra vender voto, já sabendo que seria no máximo princesa. A Dayse Marques, era dona de hotel e só os parentes já compravam votos suficientes. Não tinha hipocrisia, a gente sabia que a Dalvinha Marques, filha da Dayse, sempre ia ganhar,mas nem ligava porque ser princesa sempre rendia um perfume Avon com cartão da Lourdes Silva. Tenho o cartão ate hoje e a Lourdes Silva já se foi... 

Sempre fiquei em quarto lugar. Tinha a rainha, a vice rainha e, só me contaram depois que eram só 4 princesas, portanto eu sempre em ultimo lugar. Votos vendidos, iam D Almerinda diretora da escola, com mamãe e Valderez suas auxiliares para a biblioteca (moveis todos coloniais belíssimos) para a apuração. Até contarem o ultimo voto, era permitido ainda comprar votos e injetar dinheiro na campanha. Não era justo com os participantes, mas cumpria a motivação: a renda pra cantina da escola.
Guardei na memória uma conversa entre minha mãe e a Almerinda na hora da apuração. Mamãe falava a ela que tinha acabado de receber e se entregasse o salário eu seria a rainha, mas que ela não podia fazer isso, mas que estava dividida e de coração partido. Fez bem a mamãe em não entregar seu salário à causa, já que para mim não fazia a menor diferença. No concurso o que interessava era a andação por todo canto da cidade pra venda de voto e uma vez cumprida a missão, a cabeça já estava na nova festa e o papel a ser representado ai: Dama renascentista a dançar minueto, escolher o par pra quadrilha,(os meninos lindos, mas o meu escolhido era sempre o Vitinho,(foto) irmão da Marisa dona da loja de esquina em frente ao posto de saúde, não me pergunte porque). Dividir com a Monique Magalhães os papeis de irmãs más e deixar o de gata borralheira pra a menina  Ana Maria, da família Caminha, que era menor e tinha cara de boazinha.

Vitinho à esquerda e Janice Drummond na quadrilha
Fazendo sabão de cinza
Aventura boa era ir a chácara Santa Terezinha, local lindo com capela e até a Santa em tamanho natural. Totalmente inexpressiva na paisagem depois que construíram o trevo, a chácara era uma viagem a roça, a menos de 1 km de casa, com goiaba a vontade pra comer do pé. Às vezes o peso era grande quando alguma mãe resolvia fazer doce. Era nessa temporada que os tachos no terreiro da vó Juruvá comiam lenha. O doce explodindo e respingando e a criançada em volta esperando pra comer quente a raspa. Diferente de quando o tacho fervia o sabão de cinza. Não podia ficar perto, levava soda. Vó Juruva corria com a gente. Mas uma vez pronto e resfriado um lençol enorme era estendido no chão e em cada ponta uma criança, aprendendo a enrolar sabão. Sá Maria com a grande pá na mexeção e agente esperando a enrolação. Não era tarefa, era pura diversão.
Quisesse mais aventura, era so seguir o poeirão da rua em direção a Baependi. Chegava-se numa pontezinha onde corria o o resto do Bengo. Lindo no parque, bonitinho nos fundos da vó Juruvá e neste ponto já puro esgoto, o que em nada reduzia o encantamento.

O Matadouro, o outro lado da cidade

O Matadouro Municipal de Caxambu
Atravessando a ponte chegava-se ao Matadouro (foto) e à ultima escola da jurisdição. Que pena daqueles alunos, gente já do núcleo menos abastado, era o começo do bairro Santa Rita, que na época nem sonhava em existir. A escola limpinha, muitos cartazes de alimentos nas paredes da cantina. Acho que ai comecei a pensar em igualdade de classes, coisa que mais tarde me levou a assistente social. Tínhamos funcionários, empregados de todo tipo, mas eram mesmo que agregados, vivam com as famílias, casavam e criavam junto a nós seus filhos, e uma babá não era apenas uma serviçal, era substituta de mãe. Não havia essa divisão empregado patrão. Lembro de cada uma que tive e com elas ainda convivo. Minha mãe inspetora de ensino, dizia a diretora desta escola que abolisse a musica na merenda porque não condizia com a realidade. A letra da musica falava de pão com queijo, manteiga e leite, merenda gostosa que a todos faz bem. E minha mãe reclamando que aquelas crianças só víamos itens da letra da musica em foto. E era verdade.
Aos domingos ir à missa, depois ir ao parque andar de barco com Dona Elza Gallo. Levar o copinho dobrável e a garrafinha pra trazer água na volta. Levar o limão e um pouquinho de açúcar, pra ver a limonada espumar na água gasosa. Era chic ter a própria garrafinha, toda elaborada em palha e com alcinha, mas necessária não era, porque tínhamos um aguadero. Ele passava, recolhia o garrafão e depois trazia cheio. Era água gasosa pra semana toda. Geladeira não tinha, muito menos coca cola. Mas tinha o velho do burrinho, montado com uma sapateira de cada lado, transportando as garrafinhas de garapa. Isso sim era festa, melhor só quando ia para a fábrica de doces, goiabada na caixinha de madeira, balas de doce de leite, na Mariazinha, na rua João pinheiro. Aí, entre o goiabal, vivi um tremor de terra, pra entender direito o que significa um terremoto.
 O segredo no muro

Emocionante era o plantão das 14 hs. Horário em que passava o padeirinho, de bicicleta, com o cesto enorme a frente, fazendo as entregas. De pão ninguém queria saber, mas era bonitinho o moço e a Beth tinha por ele uma apaixonite e eu de cupincha, fazia que tava brincando com a Beth, aguardava o principe dela passar, entregava e trazia os bilhetinhos. Acho que vem daí a minha fama de cupido. (Um desses bilhetinhos foi colocado entre os tijolos da frente da casa quando esta foi reformada e até hoje esta lá, esta debaixo das pedras de Sao Thomé)*
Veio o golpe de 64, a gente ouvia os adultos contando de um grande cerco das tropas em Jacareí. O que a gente escutava assemelhava a guerra, ficávamos esperando saber das baixas, das explosões e bombas... Mas a única notícia que veio foi de um pé quebrado nas tropas, na cidade de Jacareí. As notícias vinham pela rádio, todo mundo ouvindo o locutor, um negro grandão e analfabeto, irmão de uma das minhas babás, que entrecortava as notícias com publicidade. Aprendi aí a conjugar o verbo adaptar. O locutor gritava, compre os azulejos tal, os que melhor “dapitam” em sua parede... E minha mãe torcia o nariz.
Vó "Juruva", Gervásia, com suas netas, Angela Araujo,
Elizabeth Ayres e sua nora Armindo Maria Ayres
Tempo, tempo, tempo...

Era uma vida de ir vivendo o tempo de cada coisa, tempo de ir a quermesse, tempo de visitar o Asilo, tempo de ir a Capela Santa Isabel, tempo de subir o Morro que nem Cristo tinha. Mas dava pra ver que seria imponente, as partes estavam chegando do Rio de Janeiro, a cabeça guardada num quartinho da Ação Católica. O Morro não tinha nada além da linda vista, mas a gente via muita emoção, parava pra rezar na cruz de Suzana, historia mais macabra que as do seu Joaquim.
Muito a fazer, figos pra roubar, dono já avisado que seria roubado, mas a distancia o protegia, a Chácara das Rosas que a gente invadia ficava longe, na estrada do Caxambu Velho. Dava trabalho, era difícil e demorado fugir até lá,  e tinha muita fruta mais perto.
À toa que a gente nunca ficava. Se nada tivesse a fazer, ficávamos aguardando que um carro de boi passasse, em que direção. Se fosse de casa ao centro, subíamos e descíamos no Bosque, já pra lá da Estação. Entravamos no portão de saída do Parque, atravessávamos o Parque todo e saiamos pela portaria principal. Depois, muita perna até chegar em casa. Se fosse para o outro lado era chance de ir ao Matadouro e comer umas goiabas na chácara Santa Terezinha, goiaba era o motivo, mas rezar pra Santa na capelinha a justificativa.
Se algum adulto tinha algum serviço, dava pra ir com ele ao campo de aviação, lá era fartura o leite de cabra. Não tinha avião, mas o cuidador ordenhava a cabra como ninguém.
Vida boa, debaixo dos olho azuis de Sá Maria e do cajado da vó Juruvá, a gente solto no mundo, que aquele era o mundo da gente, um mundo de milhares de universos, todos felizes

* Nota minha

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